quarta-feira, 29 de outubro de 2014

As Pedras de Elementra - Parte 2. Capítulo 17. (Ainda com Gen)



17. Terceiro Degrau.
Uma "bela" reunião de família.

Situação atual: menos dois membros da equipe (descanse em paz, Éolo); entre os feridos, só um se sobressai; um membro ausente (Raida ainda não apareceu); uma pessoa desmaiada e dois prisioneiros, também desmaiados. Acho que é isso.
Eu tentava pensar em um plano para livrar Selion daquela caçadora, ou então, pelo visto, domadora de dragões. O jeito seria tentar controlá-la de alguma maneira, mas eu nunca tinha feito algo assim antes. Uma coisa é trocar alguns elementos do campo de visão por outros que também estão nele, mas criar ilusões a partir do nada é algo muito avançado para mim.
Antes de qualquer um de nós conseguir agir de alguma maneira, ela se levantou e se espreguiçou, bocejando.

-Já gastamos um pouco de tempo, não posso mais enrolar. - ela mantinha um sorriso ameaçador no rosto. 

-O quê pretende fazer? - algum de nós perguntou.

-Habastair! - ela gritou alguma espécie de comando, levantando sua mão para o alto.

Esperamos algo acontecer. Nada explodiu, nada pegou fogo, nada foi quebrado, ninguém reagiu. Porém, Selion havia se levantando devagar. Dessa vez ele se apoiava no chão usando as mãos e as pernas, semelhante aos dragões comuns e demais animais selvagens. Seus olhos estavam vermelhos e fulminantes. Parecia nos incinerar com seus olhos.
Ele rugiu e avançou em nossa direção com suas garras flamejantes prontas para nos atacar.
Troian e Melody trocaram olhares rápidos, como se já tivessem algo planejado para isso. Melody deu alguns passos a frente de nós e aguardou pelo ataque. 
"Se usar como escudo? Ela só pode ter enlouquecido!"
Em resposta disso, Selion pareceu correr mais devagar, mas isto não era o suficiente para impedi-lo de pular em cima dela e ameaçar rasgar seu pescoço com suas garras ferventes. Todos pareciam muito chocados com isso. 
O quê era aquilo descendo o rosto de Selion? Seria uma lágrima?

-Nada pessoal, tá? - Troian o chutou de cima de Melody, o fazendo rolar pelo chão até parar, a uma boa distância de nós.

Ele se levantou depressa e atirou fogo contra mim. Por que justo para mim?
Vai ver porque eu era o curioso que tentava arrombar sua mente draconiana
Mas tive a sorte de ser protegido pela barreira de gelo que Kathryn fizera na hora certa para me defender. A barreira foi reduzida a uma pequena poça d'água em instantes.

-Agora sim ficou emocionante! - Scarlet aplaudia de pé. - Hey, Selion! Chamastrail!

Eu já não gostei do comando. 
O corpo escamado de Selion pegou fogo e seu corpo pareceu aumentar. Não, não pareceu aumentar. Ele havia aumentado. Seus dentes estavam ficando maiores, e prefiro nem falar das garras. Para você ter uma noção, elas já eram afiadas antes. Agora estavam mais.

-O quê faremos agora? - Merith disse com sua voz trêmula de desespero.

-Precisamos de tempo pra pensar no que fazer... - pensei alto.

Estava tão envolvido na situação que nem percebi que estava falando meus pensamentos em voz alta. Resolvi me controlar antes que dissesse algo absurdo ou vergonhoso.
De repente, comecei a ouvir uma voz estranha. Eu já conhecia aquela voz, já tinha escutado ela outrora. Vinha da mente de Selion. Pode me chamar de louco se quiser, mas eu tenho certeza que aquela voz implorando por ajuda para se libertar não era de Selion. Com toda a certeza não.
Resolvi deixar de lado. Por agora.
Eu tinha mais com o que me preocupar.

-Ingo, nenhuma arma? - perguntei a ele.

Ele balançou a cabeça negativamente. 
Selion voltou a se dirigir até nós, jogando enormes bolas de fogo. Ele mudava de alvo a cada tiro, era impossível prever quem seria o próximo. Yousuke pôs-se na frente de nós, cortando as bolas de fogo ao meio com sua espada, fazendo-as se dissipar.

-Gêmeas ninja, - Melody chamou - tentem novamente invadir aquele cubo, nós damos um jeito neles.

Annie e Stephie assentiram e correram pelas laterais até o quadrado tridimensional que pulsava e se rebatia no centro do lugar. Scarlet pareceu não gostar da ideia.

-CHAMASTRAIL! - ela fez uma arma com os dedos e mirou para as duas ninjas.

Selion para imediatamente seus ataques e as acertou com uma rajada de fogo enquanto ambas estavam no ar. Elas foram derrubadas. Caíram rolando no chão até bater com tudo na parede.

-MEU CABELO! - Annie gritou enquanto o apalpava, tentando apagar o fogo.

-Mal posso esperar pra ver o resultado que o próximo comando terá em você! - Scarlet revelou um sorriso maldoso.

Aproveitamos que Selion estava distraído e o atacamos. Nem todos, claro. Ingo posicionou sua alabarda e se preparou para um futuro ataque. Merith e eu ficamos atrás de Ingo, não tínhamos outra opção. Aslan estava tentando curar Misake de sua própria maneira, então consequentemente teve que se reunir conosco para não ser atacado.
Kathryn conjurou uma poça d'água no chão para Adrian usá-la contra Selion. Ele levantou suas mãos devagar. A água se levantou do chão, seguindo seus movimentos, e dispararam em direção de Selion, que rugiu ao ser tocado por ela.

-Tentem não machucá-lo! - Melody pediu.

Ao meu lado, Aslan ainda tentava usar seus métodos medicinais druidas para curar Misake. Ele tinha alguns totens cravados no chão e espalhava algumas ervas no seu braço. Algumas eram azuis, outras pareciam folhas pontudas semelhantes a pedaços de cactos.
Tive a leve sensação de estar sendo observado. Olhei para todos os lados possíveis, da maneira mais discreta que consegui. Não havia nada.

-Segure Selion. Eu vou acabar com isso de uma vez. - Melody se dirigiu na direção de Scarlet. 

Suas mãos brilharam. Agora sua mão direita estava coberta por gelo, e sua mão esquerda por água. Ela apressou o passo, correndo em direção de Scarlet. Selion até tentou pará-la, mas Adrian o atacou antes que pudesse.

-Você não vai fazer nada? - perguntei a Lucius.

-Não posso intervir nesses assuntos. - ele se sentou no chão e cruzou os braços e as pernas.

"Melhor nem perguntar."
A sensação que eu sentira outrora aumentou. Eu tinha certeza de que alguém me observava. Aquela sensação era como ter alguém de pé atrás de você. Mas não havia ninguém lá.
Aquilo estava me incomodando tanto que não conseguia prestar atenção aos acontecimentos ao meu redor. 
E então eu vi. Atrás de mim, um pouco longe na verdade, lá estava Gar. Me encarando com seu sorriso maníaco e suas órbitas oculares que não existiam. Ele mantinha seu visual pós corrupção: sua longa jaqueta púrpura que ia até os pés, sua calça jeans também no mesmo tom e sua bengala habitual. A única novidade era uma cartola que usava sobre sua cabeça.

-Ora, ora... - sua voz retumbou em meus ouvidos.

Todos ao meu redor haviam sido paralisados. O lugar todo havia ficado cinza e as únicas cores existentes eram as de meu corpo e de Gar. Ele estava se projetando na minha mente, conheço bem esse truque, não era a primeira vez que eu o via em ação.

-O quê encontramos aqui... - Gar estralou os dedos das mãos. - Não esperava que ainda estivesse aqui depois do que passou, lembra?

As correntes e os ganchos irromperam minha mente. Eu estremeci de pavor e sacudi a cabeça, tentando esquecer aquilo. Mas eu sabia que jamais esqueceria.

-Eu vou acabar com você, Gar. E depois vou te curar de alguma maneira pra voltarmos para casa! 

-Jura? Você é tão atencioso! Seria uma pena... Se eu dissesse que seu irmãozinho não existe mais. 

Cerrei meus punhos e corri até ele. Saquei minha espada curva e tentei acertá-lo. A espada o atravessou, mas eu não desisti. Fatiei seu corpo até me cansar, mas nenhum dos ataques fez efeito.

-Criança, você sabe que não pode me tocar, por que ainda tenta?

Ele deu um salto mortal para trás e se firmou ao chão com suas mãos. 

-Agora tenho uma visão mais ampla do seu fracasso. - zombou Gar.

Armas físicas eram inúteis. O nível dele era muito superior ao meu, logo meu esforço em tentar atacá-lo mentalmente também seria inútil. 

-Eu sei que você tem um motivo para estar aqui. Fale logo ou...!

-Ou o quê? Você vai me matar? FAZ-ME RIR! - ele deu outro salto e se pôs de pé.

-Ou... Ou... - eu devia ter pensado melhor no que disse.

Gar se aproximou de Merith, que ainda estava paralisada. Suas roupas, cabelo, pele... Tudo estava acinzentado, como tudo ao redor.

-Vejamos... Você... - ele tocou em sua testa. - A, você também. - ele saltitou até Ingo e cutucou seu braço. - Quem mais?

-O quê está fazendo, seu pirado?! 

-Falha minha. Fui muito rude. Não posso me esquecer de vocês. - ele tocou nas costas de Aslan e então correu até mim com seu corpo abaixado. Aquilo nem parecia possível.

Ele pulou e desapareceu na minha frente. Senti um cutucão rápido em meu pescoço. Gar estava atrás de mim com seu sorriso imenso e doentio.

-Você nem tem olhos, como consegue ver?! - me afastei dele aos tropeços.

-Eu sacrifiquei meus olhos para ter uma visão mais ampla. Mas não é nada que uma batata não posso ensinar a um aipim.

"Quê?"
Gar se aproximou e colocou sua mão em frente a minha cara. Ele estalou os dedos e tudo ao redor rachou e se quebrou, com um barulho de vidro estilhaçado ao fundo. Era como se o universo fosse um espelho que havia sido quebrado. 
Tudo ao redor ficou preto. 
Me vi em um túnel escuro com estalactites mortais acima de minha cabeça, logicamente não seria um túnel, sim uma caverna, porém o chão era feito de concreto puro. Não se encaixava na descrição de uma caverna. 
Logo a minha frente eu via uma fonte de luz. A luz do fim do túnel. Se eu não soubesse que aquilo era um reflexo doentio da mente de meu irmão, eu teria corrido na direção oposta a essa luz.
"Pior que está não fica, certo?"

Eu não fazia ideia do quanto eu estava errado.
Caminhei a passos largos e apressados até a luz, com aquela sensação de que algo terrível iria acontecer. Novamente, lembrei-me das correntes, dos ganchos. Cheguei a ter um calafrio. Aquilo não iria me deixar em paz.
Fora do túnel, eu me encontrei com meus companheiros. Porém somente aqueles que Gar havia tocado. Estavam reunidos Merith, Ingo e Aslan, todos confusos com a situação, em uma enorme sala branca sem nenhuma, exceto o local por onde eu entrara.

-Pessoal! - chamei.

Todos reagiram ao meu chamado e se aproximaram de mim, me fazendo perguntas como "têm alguma noção do que está acontecendo aqui?" ou então "como veio parar aqui conosco?".

-Isso é... Culpa de Gar... - mordi meu lábio, temendo a reação deles.

Mais uma vez, Gar me metia em uma situação frustrante, e envolvendo aqueles ao meu redor junto. E eu não conseguia fazer nada para impedir.

-De novo? Por quê?! - choramingou Ingo.

-Está falando do Devorador de Sonhos? - Aslan quis saber.

-É... Meu irmão imbecil. Estou prestes a desistir dele. 

-Recomendo que não faça isso. - Aslan colocou sua mão sobre meu ombro e me encarou com sua cara séria. - Não desista de seu irmão, de jeito nenhum!

-Por que eu deveria continuar a lutar por ele? Além de estar inalcançável, eu não nem sei como curá-lo dessa praga que colocaram nele. 

-Não é nenhuma praga. É magia negra. Veja bem, - Aslan se afastou - ele foi infectado, não é?

-Sim... - suspirei infeliz.

-Você já se perguntou pelo quê?

Refleti sobre isso. É óbvio que já havia me perguntado. Eu sabia, na verdade, o que tinha infectado ele, o corrompido.

-Ele foi corrompido por usar suas capacidades mentais da maneira errada. E então teve contato com pessoas não muito agradáveis, e acabou resultando nisso. - expliquei.

-Errado. Não foi nada disso. 

Essa era a única explicação, como poderia estar errada?

-Bom, em partes está certa, na verdade. - Aslan se corrigiu. - Ele foi corrompido por usar suas capacidades demais, isso está certo. Mas ele não teve contato com pessoas erradas. Mas com a energia errada. 

"Energia errada?"
A única energia que ele poderia estar falando seria a energia negra que o corrompeu. Mas disto eu já sabia faz muito tempo. Afinal, as pessoas erradas a apresentaram para ele, não é?

-Acho que me expressei errado... Veja, seu irmão... - um monte de trompetes começou a tocar, interrompendo a explicação de Aslan.

Gar estava atrás de Aslan. Era difícil perceber por sua ausência de olhos, mas ele parecia zangado. 

-Você fala demais. E é um grande fofoqueiro, sabia elfo mixuruca? - Gar puxou sua longa orelha de druida.

Aquilo foi muito infantil, até mesmo para ele.

-Se gosta tanto de falar, me fale o que você prefere. Morte ao fogo ou passar o resto da vida sem falar e ouvir? - meu irmão tentou intimidá-lo, mas não foi bem esse o resultado.

Aslan estava mesmo era irritado.

-Olha só, seu psicotroço retardado, eu não sou um elfo. Eu sou um DRUIDA. São coisas TOTALMENTE diferentes! - Aslan sacou seu machado e tentou acertar Gar. 

Mas falhou. Gar se abaixou antes de ser acertado e pulou para trás, a uma boa distância.

-Ui, parece que temos um elfo brabinho entre nós. - Gar levantou suas mãos, fingindo ter medo a fim de provocá-lo.

-Ora seu... - Aslan correu para atacá-lo, mas errou todos os golpes.

Gar desapareceu na sua frente e reapareceu segundos depois atrás de suas costas, onde o acertou com um golpe de cotovelo. 

-JÁ CHEGA! - Merith gritou com sua voz esganiçada. - PAREM COM ISSO TODOS VOCÊS!

As paredes ao redor pareceram oscilar. Isso me deu uma ideia interessante.

-Eu não aguento mais você. Você só está aqui para nos trazer sofrimento e dor. - Merith caminhou em suas direção com seu cabelo tapando seus olhos. - E QUER SABER? QUERO QUE VOCÊ SE EXPLODA! VOCÊ NÃO TEM NADA HAVER COM ESSA PORCARIA DE GUERRA PELO BEM DA HUMANIDADE!

Gar estava chocado. Aliás, todos estávamos. Mas eu sacudi minha cabeça e pensei na coisa que mais me dava raiva. O acontecimento mais frustrante da minha vida. Eu preciso de uma fonte de raiva extrema para meu plano dar certo.

-Merith...? S-se acalma... - Ingo tentou acalmá-la.

Ela o encarou de canto de olho de uma maneira que eu jamais havia visto antes. Ingo foi forçado a recuar.

-O-olha como fala comigo, mocinha azulada! Eu posso te matar agora mesmo ou... - Gar a confrontou.

-OU? OU O QUÊ?! DIGA! - ela pisou com tudo no seu pé.

Ainda estavam chocados demais para reagir.

-AGORA OUÇA O QUÊ EU TENHO A DIZER! VOCÊ VAI NOS DEIXAR SAIR DAQUI AGORA, VAI ABANDONAR ESSE LUGAR E NUNCA MAIS VAI CAUSAR PROBLEMA ALGUM! E se você não fizer isso... Você vai conhecer o meu lado negro que eu tive MUITO trabalho para esconder! 

Gar ficou sem palavras. Abaixou sua cabeça e se afastou.
As paredes pararam de oscilar, se tornaram sólidas novamente. Não era um bom sinal.
Meu irmão abriu um enorme sorriso, e começou a gargalhar. Já estava até acostumado com aquela reação dele em momentos como esse.

-SEU... EU VOU... - Merith avançou até ele.

-Vai é? VAI O QUÊ, CRIANÇA?! - Gar revidou. - Você não passa de uma menina fraca e indefesa. Você realmente me surpreendeu, sabia? Mas eu não sou tolo o suficiente para me deixar enganar por uma atuação como essa. Você não pode acabar comigo, não pode me fazer um arranhão. Porque você é FRACA.

Tentáculos sombrios saíram do chão e enrolaram seus braços e pernas.

-Me deixe sair daqui. AGORA! - ela ordenava enquanto se debatia.

-Você não tem poder sobre mim. 

Acenei para Ingo enquanto Gar estava distraído.

-Eu tenho um plano. Acho que vai dar certo. - expliquei rápido.

Contei a ele minha ideia sobre raiva e sobre as paredes que pareceram reagir ao stress de Merith da maneira mais breve que consegui. Ele sinalizou que entendeu tudo com a mão, levantando o polegar.
O plano era desestabilizar essa ilusão com raiva, como Merith quase conseguiu. Aslan já estava irritado por ser chamado de elfo, Merith teve um surto por algum motivo. Nós quatro juntos seríamos o suficiente para derrubar esse mundinho de Gar.

-PARE! PARE AGORA MESMO! - Merith gritava enquanto tinha seus membros exprimidos pelos corpos gelatinosos.

Na tentativa de salvá-la, Aslan tentou cortar os tentáculos que a prendiam, mas não teve efeito algum. Seu machado atravessou-os como se nem existissem.
E então, Gar se voltou para Aslan. Flechas saíram das paredes e o acertaram. No início eram uma ou duas flechas por vez, mas elas foram se multiplicando. Logo, eram dez flechas por vez, depois uma dúzia... Quando percebi, nem conseguia mais contar.

-Quem mais vai levantar algum dedo contra mim? - Gar estava jogando seu cabelo para trás sem parar, nos tratando como "a ralé".

-Eu. - Ingo se ofereceu.

-Você... Se ofereceu? Uau, que surpresa. Mas também, fraco como você é... Tinha que se render mesmo. - meu irmão tentou ridicularizado.

Mas Ingo estava confiante. Ele confiava em mim. Sabia que tudo ia dar certo.
Mandei uma mensagem mental para Merith e Aslan. Pedi para ignorarem toda a dor e pavor e transformar em raiva pura, mas só ao meu sinal.
Eu podia sentir o medo de Ingo. Mas mesmo assim ele se mantinha firme. Reuniu coragem e se dirigiu até Gar.

-Você não pode me derrotar.

Os dentes de Gar cresceram, se tornando pontudos e desumanos. Parecia uma criatura de filme de terror agora. Sem olhos, uma boca cheia de dentes medonhos e mortais. Já pode assustar as criancinhas na hora de dormir.
Um vulto apareceu na frente de Ingo. Eu não o reconhecia. Aos poucos, ele passou de uma sombra escura até uma imagem clara de alguém.
Era um homem comum que aparentava ter entre vinte a trinta anos. Seus olhos eram verde claro. Seu cabelo desgrenhado era loiro claro, quase idêntico ao de Ingo, e seu queixo era coberto por um amontoado organizado de pelos da mesma cor. Seus braços musculosos estavam cheios de tatuagens tribais que eu nunca vira antes, e todas tinham algo em comum, uma imagem de algo que se assemelhava com uma esfera, rodeada de névoa, em seu centro.
Cobria seu corpo uma camisa regata cinza com uma escritura que eu não conseguia ler, de tão embaçada que era, e uma bermuda esportiva. Usava em seu pés uma sandália de couro com a mesma escrita de sua camisa nas laterais.
A cara dele me fazia lembrar vagamente a de Ingo, o que me levava a deduzir que poderiam pertencer a mesma família, possivelmente irmãos.

-Isso... É golpe baixo... Você não... Ele... - Ingo estava perplexo e estava a ponto de chorar.

"Mantenha o foco!" eu o avisei por pensamento. "Nada disso é real!"

-Gar... Não vou perdoar por brincar desse jeito com a imagem de meu pai! - ele partiu para cima de Gar com sua alabarda.

O homem, pai de Ingo, se meteu no meio do ataque e foi atingido em seu peito. Não era uma ilusão, era uma figura sólida dessa vez. Ele caiu no chão com seu peito sangrando.

-Não... Não... D-de novo não... - Ingo se abaixou para ajudá-lo.

-Você nos traiu novamente... Não acredito que fui tolo de acreditar em você... - seu pai cuspia sangue no chão enquanto falava.

Eu não conseguia acreditar no fato daquele homem ser o pai de Ingo. Tudo bem que ele ainda era novo, mas ele parecia muito jovem para ter um filho daquela idade.

-Papai, não! Eu não... Isso é um engano! - Ingo o abraçou com lágrimas escorrendo dos olhos.

Ele mordeu a isca de Gar. E eu não tinha como avisá-lo, era tarde demais.
O homem se soltou de Ingo e o levantou no ar com uma de suas mãos. Ingo tentou se libertar, atacá-lo com sua alabarda. Mas ele havia largado ela no chão depois de atingi-lo. Agora ele parecia mais uma criança chacoalhando a mão enquanto fingia que ali havia uma espada.
Sentei no chão e cruzei as pernas. Fechei meus olhos e me concentrei.
Reuni toda a raiva que sentira de meu irmão nesse momento. O modo como havia me torturado, o modo como agora torturava meus amigos... 
Merith e Aslan faziam o possível para pensar como eu, transformando tudo em raiva, ódio, mas estavam sentindo muita dor para conseguirem suportar.
Sobrou para mim tornar a ilusão instável. O único problema seria como eu iria fazer isso.

-É um engano! Pare! - Ingo implorava pelo perdão de seu, aparentemente, amado pai.

Mas ele agiu friamente. O jogou no chão como se fosse um lixo.

-Você sempre foi o pior de nós. Uma desgraça. Não sei como logo você foi escolhido para carregar o poder de nossa linhagem! - as falas de seu pai estavam fazendo mais dor a Ingo do que golpes físicos.

-E você? "Maninho"? - Gar se aproximou de mim na ponta dos pés, fazendo questão de mostrar sua nova arcada dentária - Está meditando é? Virou budista? Oooowwww! - ele imitou o cântico de meditação dos monges.

-Estava planejando como nos tirar desse lugar. E sabe que você me deu uma ideia? - agora foi a minha vez de sorrir.

-Até parece, criança tola. Vou fazer você se arrepender de pensar que um dia poderia me alcançar! - Gar estalou os dedos das duas mãos juntas, na frente da minha cara.

Minha cabeça começou a doer intensamente. Caí de bruços no chão contra minha vontade. Devo ter sido empurrado por alguma coisa.
Gar colocou seu pé em cima da minha cabeça.

-E então? Cadê aquela superioridade, irmãozinho? 

O chão abaixo de mim ficou líquido. Aos poucos, fui submergido por aquele líquido preto e viscoso que aparecera como fruto da vontade e imaginação de Gar. Era como estar mergulhado em piche. 
Eu tentava me levantar, mas Gar me empurrava mais para baixo. Logo, eu não teria mais como respirar e acabaria desmaiando. Mas não.
Gar não se contentaria com isso. 
Ele esperou até eu ficar sem ar, até parar de me debater, para levantar minha cabeça e ver minha cara de derrota. 

-Os jogos mal começaram! Já vai desistir? 

Ele me jogou em direção do teto. Com a cabeça girando e tudo ao redor embaçado, fiquei preso de algum jeito. Demorei para perceber que estava grudado em uma enorme teia de aranha. 
Neste mundo louco, o maníaco que o controla é o único que o entende. Essa foi a última frase que ouvi meu irmão de verdade dizer. Mas ele já podia estar enlouquecido naquela época. Já faz muito tempo, eu não consigo nem lembrar.
Eu respirava fundo diversas vezes, ofegante, lutando para cuspir todo o piche que havia entrado em minha boca.
Abaixo de mim, via Merith tendo seus braços puxados pelos tentáculos. Eles haviam dominado quase todo o seu corpo. Estava quase completamente "engolida" pelos tentáculos.
Aslan ainda era atingido por milhões de flechas, só que com uma novidade, machados. Gar estava aproveitando sua fraqueza emocional para atingi-lo em cheio com uma infinidade de armas e munições.
Ingo sofria pelas palavras de seu pai. Ah, não, espere. Não eram mais só palavras. Seu pai segurava um enorme martelo. Parecia tão grande e pesado, mas ele o erguia como se não fosse nada. Ele atacava o filho com ele, que usava sua frágil alabarda como escudo. Ela estava quase cedendo. 

-Não... - uma gota de piche escorregou para dentro de meu nariz.

Raiva. Não, dor. Era muita dor e sofrimento. 
O lugar se desestabilizou com raiva, não com dor. Eu fracassei, mais uma vez.

-G-Gen! - Merith chamou com sua voz abafada pelos corpos gelatinosos. 

Ratos começaram a subir pelos tentáculos. O pior pesadelo de Merith.
Lutei para redirecionar minha visão para onde estava Ingo. O pai dele o batia com aquela arma, como se fosse o maníaco do Gar, enquanto um monte de patos ao redor os assistia.
"Os medos... A ilusão da cozinha era pra isso. Era para revelarmos nossos terrores mais bem guardados. E por minha culpa, eles contaram os deles."

-Gostou do resultado? Eu admito que deu bastante trabalho, mas eu gostei. - Gar se aproximava de mim lentamente, sendo erguido do chão por um pequeno palco de circo multicolorido. 

-Eu odeio esse novo você. 

-Eu me amo! - ele fechou os braços ao redor de si mesmo, se abraçando.

Tentei tomar o controle da ilusão com todo o resto de minhas forças. Além de ser uma tentativa inútil, fez Gar me olhar de cara feia.

-Está certo, hora de acabar com isso. Ou então te dou tempo suficiente para me derrotar. Eu não sou um vilão tão clichê assim, sabia? - ele abaixou sua cartola e pulou de costas. 

Caiu no chão intacto, depois de cair vários metros de altura.

-Pode matar, Eithan. - Gar gritou no ouvido do pai de Ingo.

Eithan era seu nome. Eithan Nova Hope. Pai de Ingo Nova Hope.
Ele ergueu seu martelo para o mais alto que seus braços conseguiam ir. 

-Não! Por favor, não! - Ingo estava todo ferido e sangrando.

Sua atividade cerebral estava baixa. Este ataque seria seu último que levaria na vida. 

-Ao meu sinal, sim? Quero os três ao mesmo tempo. Capricho meu. - Gar saltitou cantarolando até Aslan.

Gar o cutucou com seu pé. Ainda vivo.

-Você é duro na queda, não é mesmo, elfo? - Gar passou a mão em sua cabeça. - Muito sangue. Assim que é bom.

Aslan estava sem forças para falar. 
O teto começou a fazer barulho de engrenagens, como se alguma máquina tivesse sido ligada. Acima de Aslan, um enorme canhão desceu do teto, apontando diretamente para ele. 

-Quero ver eu não explodir seu espírito agora. - como de esperado, Gar foi a encontro de Merith.

Ele tirou os membros pegajosos de sua cara e a encarou.

-Olá. 

-VÁ PRO INFERNO! VÁ PARA O INFERNO! MORE LÁ, É O SEU LUGAR! - ela gritou com ele depois de puxar o ar bem fundo.

-Por que ser tão agressiva? Vim aqui para te fazer uma proposta. - ele passou a mão em seu rosto - Sabe, eu não tenho um rainha ainda. E eu vou me tornar general do novo mundo que criaremos quando Aron retornar, sabia? O quê acha de ocupar o cargo? Prometo vários súditos.

Merith pareceu enojada com a proposta. Mostrou a língua para ele e tentou se libertar, mas não obteve sucesso.

-Gar, deixe ela em paz! - ordenei.

-Você e que exército? 

-Isso não faz sentido... Saudades lógica. - Ingo brincou, praticamente rindo da cara da morte.

-Eithan. Pode matar. - o sorriso no rosto de Gar desapareceu.

Ingo ficou paralisado de pavor. Seu pai puxou o martelo para trás e ameaçou acertá-lo com tudo. Ingo não poderia fugir nem se quisesse, seu corpo estava ferido demais para se mover.

-Canhão, FOGO! - Gar gritou para os céus.

O canhão se moveu mais para baixo, focando precisamente em Aslan. Ele iria disparar a qualquer momento.

-Você eu vou deixar viver. Talvez eu possa brincar com você mais tarde. - ele passou a mão pelo rosto de Merith - Eu não sou tão ruim assim, sabia?

Eu comecei a me descolar do teto. A teia de aranha estava cedendo, e eu cairia com tudo no chão. Se eu sobrevivesse, talvez consegui-se salvá-los!

-Não sou tão estúpido, Gen. 

O chão se abriu logo abaixo de mim. Parecia uma pia com ralo destruir de comida. Havia lâminas por todos os lados, fazendo movimentos para todas as direções. Eu iria cair exatamente ali, e morrer despedaçado.

-Não se preocupe, você vai viver. Tenho que torturar mais, não é? Que graça teria matar meu irmãozinho cuti-cuti agora? 

Aquilo me fez lembrar dos ganchos. Me estripando, me fazendo em pedaços, dia após dia. Pelo resto de minha vida.
Não, isso não pode acontecer. Eu não vou deixar.
A teia cedeu. Eu caí em direção da morte.

-GEN! - Ingo gritou.

Pensar na teia cedendo não foi um bom plano, sem dúvida alguma.
Eu parecia cair lentamente. Será que eu iria ver toda a minha vida passar diante dos meus olhos agora? Não, porque eu sobreviverei. Para viver da pior forma possível, para sempre.
Dia após dia, serei morto e renascido dentro de minha mente. Sentindo toda a dor que Gar quiser que eu sinta, mas não o suficiente para me fazer perecer.
Já até podia ver. No dia que eu não aguentasse mais, Gar iria rir em cima de meu túmulo. Isso é, se ele se importar a ponto de me enterrar. Eu poderia virar comida de cão infernal, por exemplo.

-Ele está caindo lento demais... Vou acelerar isso. - Gar bocejou.

Espera, eu estava mesmo caindo mais devagar?
Essa era uma chance para fazer alguma coisa. Mas o quê... O quê...
Não havia nenhum objeto que eu pudesse mover para me tirar de lá. Não havia ninguém para me salvar, estava por minha conta.
Eu estava a ponto de desistir quando algo acertou a minha cabeça. Eu não sei o quê foi, e nem de onde veio, mas pareceu abrir algo em minha cabeça. Desbloquear algo em minha mente. Libertar alguma coisa. Você entendeu, né?
No meu último momento de vida livre, tentei usar minha mente para modificar a ilusão. O buraco mortal no chão se tornou uma piscina.
Tchibum! 
Caí com tudo na água, sem dor alguma. Ainda havia uma chance, e eu estava disposto a aproveitá-la.
Nadei até a superfície o mais rápido possível e saí da água. Eithan já havia começado seu ataque contra Ingo, seu ataque final. Apontei minha mão para ele, forçando a ilusão. Eu não cheguei a tempo, não consegui parar a tempo. Pude ouvir o estouro que se deu pelo ataque.

-INGO! - corri até ele.

Era difícil correr, minhas roupas estavam pesadas, encharcadas pela água.
Ao me aproximar, tudo que pude fazer é ficar pasmo. Ele estava intacto.

-Ingo...?

Seu pai não desistiu. O atacou novamente, porém desta vez eu tive tempo para impedir. Eithan desapareceu, ao meu comando. Como eu disse, tudo uma ilusão. Uma ilusão real e muito convincente, mas não deixa de ser falso. Será que isso faz sentido?

-Como você...?!

Ele não precisou responder, já havia entendido tudo. Em cima dele estava seu pequeno mascote, Green, uma criatura, literalmente, verde, vestida com folhas.
Ele carregava consigo uma pequena espada de graveto, mas obviamente não foi aquilo que salvou meu amigo, mas sim a esfera defensora que ele havia criado ao redor de si mesmo. Ele apareceu na hora certa!

-O-obrigado... - Ingo desmaiou pela falta de sangue.

Quando voltarmos para a realidade real - admito que dizer isso é estranho -, ele vai estar melhor. 
Um grande estouro ecoou pelo lugar. Eu me esquecera da situação de Aslan, mas não era tarde demais. Coloquei minha mão em minha cabeça, a fim de reforçar a telecinesia, e puxei Aslan para perto de nós. Todas as flechas e armas foram retiradas no caminho.
A bala do canhão quebrou o chão de uma forma que eu jamais vira, ou iria ver, na vida. Mas Gar se superou, conseguiu fazer algo impossível desse jeito acontecer. 
Ao bater no chão, o chão ondulou como água e explodiu em líquido metálico. Isso mesmo, algum metal em forma líquida. 
O interessante, é que ele ficou parado no ar, como se não houvesse gravidade. Seria muito legal tirar algumas fotos pra mostrar para todo mundo depois, mas não era o momento certo.

-PARE! PARE AGORA! - Merith berrava.

Gar estava mordendo seu pescoço com seus dentes irregulares e tenebrosos. Ao invés de sangue, um líquido azul escuro saía de seu corpo. Sua pele estava empalidecendo e murchando pela falta de sangue.

-Gar. Tire suas mãos sujas dela imediatamente. - a raiva que eu estava tentando recolher veio a tona.

Por que esse sentimento infeliz não me ajudou mais cedo?!
Gar fez como mandei e se afastou dela. Os corpos pegajosos a envolvendo também sumiram, junto com os ratos andando sobre eles, fazendo-a cair no chão, indefesa.

-Eu por acaso permiti que você ficasse vivo? Agora se atira no penhasco, vai! Eu mando em tudo aqui, vai pro teu canto. 

-Gar, Gar, Gar... Se você soubesse o quanto está enganado... - respondi a seus comentários com um sorriso no rosto.

Eu estava na vantagem agora, ele não.
Em um movimento rápido, ele apareceu atrás de mim e me acertou em cheio, diretamente na coluna, com seu cotovelo. Doeu muito, até caí no chão chorando. 
Brincadeira, ele não acertou. Eu li seus pensamentos, sabia que iria atacar, então eu desviei. 

-Como conseguiu fazer isso? - Ingo estava impressionado.

-Sem tempo! Vão ajudar Merith!

Eles correram até ela, contornando o metal parado no ar. Embora fosse líquido, formava vários espetos, linhas irregulares, formas pontudas, que poderiam vir a nos trazer muita dor.
Ataquei Gar com minha espada curva. Ele adivinhou meus movimentos e desviou, tentando me acertar novamente, dessa vez usando seus novos dentes como arma. 
Meu irmão podia não ser mais ele mesmo, mas permanecia ágil e capaz como sempre. Não consegui desviar a tempo e fui atingido.

-E então? Como é ser o segundo lugar em tudo? Aposto que deve ser muito BAIXO astral! - ele me jogou no chão e colocou seu pé em minha cara. 

Ele não fazia muito sentido agora. Talvez eu pudesse abusar disso.
Imaginei uma pequena explosão em frente a sua face, o suficiente para afastá-lo. Como um estouro de fogos de artifício, uma pequena explosão surgiu na frente da cara de Gar, o fazendo cambalear para trás e cair. Ao tocar o chão, ele rapidamente mudou seu rumo. Rolou pelo chão, impulsionou as duas pernas para pular e cair de pé no solo. Se ele não fosse o inimigo agora, eu aplaudiria.

-Parece que você está virando uma pedra em meu sapato. - Gar pegou sua cartola no chão e a pôs na cabeça.

-Você ainda não viu nada! - corri até ele com minha espada.

Resolvi parar no caminho. Eu tinha parte do controle total sobre aquele lugar, podia fazer algo muito melhor que um pequeno ataque com uma espada menor ainda.
Fiz um palco e um bastão aparecer em minhas mãos.

-Como você diz mesmo? Lembrei. É hora do show! - levantei meus braços como se cumprimentasse uma grande platéia.

-Você está me plagiando? QUEM VOCÊ PENSA QUE É PRA PLAGIAR MEU ESPETÁCULO?! 

Touchée!
Gar se invocou contra mim. Suas pernas cresceram e se esticaram em minhas direção. Ele agora tinha em mãos uma pistola antiga, como aquelas de filmes de faroeste.
Tentou me chutar com seus pés alongados, e era exatamente isso que eu esperava. Pulei para o lado e fiz um espelho aparecer em minhas mãos.

-LADIES AND GENTLEMEN! Nosso respeitável público! Temos uma atração muito especial para vocês hoje! - agi como se tivesse mais de três pessoas nos assistindo, era isso que Gar faria.

Gar começou a gritar um monte de xingamentos para mim, eu deixei ele bastante irritado. Ainda bem, porque esse era o objetivo.

-Você vai ver, seu pirralho imbecil!

Uma enorme criatura apareceu a sua frente. Era uma fusão de um monte de animais que formava uma criatura grotesca e assustadora que contava com: garras de caranguejo, pernas de tigre e zebra, cara híbrida entre leão e touro, língua de cobra, chifres de bode, cauda de serpente marinha, tronco de gorila, entre outras partes que não consegui identificar.
Ele caprichou, tenho que admitir.

-E então? ESTÁ COM MEDO?! 

-Apavorado. - sorri e levantei o polegar para ele.

Ele não notou que era brincadeira. "Só um louco entende o outro", agora comecei a acreditar nesta frase. Mas seguindo essa lógica, sou doido de pedra.
A criatura avançou em minha direção.

-Cuidado! - Ingo alertou.

-Faz tudo parte do show.

-VOCÊ NÃO VAI PARAR COM ISSO?! - Gar reclamou, enfezado.

Mostrei o espelho para a criatura no momento em que se aproximou de mim. O espelho se curvou e dobrou até virar um pequeno quadrado, e depois se expandiu até ficar maior que a criatura bizarra.
A criatura bateu no espelho e o quebrou em um milhão de pedaços que voaram para longe. 
Ela se virou contra Gar, pronta para atacar.

-Deixe-me explicar. Agora eu roubei seu bichinho, fim da história. 

-Você conseguiu virar algo que eu criei contra mim? Não, não, não! Isso não é possível, você é fraco e inútil! - ele começou a caminhar para trás, se afastando.

-Eu tenho meus dias. - dei de ombros.

Com um gesto de minha mão, a enorme criatura monstruosa atacou Gar. 

-Tsc. Até outra hora. - Gar desapareceu.

-Não, essa hora é AGORA! 

Impedi sua saída, mantive ele preso em seu próprio mundinho, algo que para mim seria impossível a uma hora atrás.

-Você...?! - Gar estava ainda mais perplexo e surpreso.

O líquido metálico preso no ar o prendeu, do mesmo jeito que fizera comigo, e começou a puxá-lo pelas pernas e braços.

-E então? Como vai escapar agora? Você gosta disso? EU NÃO GOSTEI NEM UM POUCO, GAR! - eu perdi meu controle emocional.

Esse era o meu medo. De perder o controle quando o tivesse em minhas mãos. Ele me trouxe tanta dor, e tudo que eu desejava era sua companhia outra vez, eu desejava minha família de volta. Mas ele havia ido longe demais. Eu não conseguia mais distinguir se eu queria matá-lo ou estar com ele novamente.

-Gen... Pare... - uma voz pediu vinda de algum lugar atrás de mim.

Merith. Ela havia despertado e estava sendo carregada até mim.

-Não se preocupe, eu vou vingar todos nós.

Comecei a apertar os membros de Gar usando sua própria explosão de metal.

-Cara, que besteira. Já estamos livres, vamos só tirar sua consciência e dar um jeito de curar ele! - Ingo parecia irritado. 

Ignorei-o. Eu havia me decidido.

-Criatura, pode acabar com ele. - mandei.

Merith ficou de pé mesmo com suas pernas tremendo. Ela já parecia melhor, sua pele estava quase de volta ao habitual, porém suas pernas tremiam ao tocar o chão.
Ela segurou em meu ombro e se aproximou. Usei minha influência naquele mundo para fazê-la melhorar, repondo seu sangue. Ela me agradeceu. Não, não agradeceu, me deu o maior tapa que já havia levado na vida.

-Por quê...? - passei a mão pela minha bochecha que ardia como brasas.

-Porque você enlouqueceu, idiota. - ela puxou seu cabelo azul claro com as mãos e o prendeu em um rabo-de-cavalo - Você queria seu irmão de volta, do que adiantaria um cadáver? Francamente...

-Você está tão diferente... Nem parece a mesma Merith! - Ingo revelou.

-Sim, não sou a mesma Merith. A Merith que vocês conheciam era a falsa que eu criei. Mas esse "Gar" - falava como se aquele nome não fosse dele - me fez revelar a vocês meu verdadeiro eu. E eu não gosto de mim. Tentei mudar, mas pelo jeito ele não gostou e mudou isso, parabéns.

Eu ainda estava processando a informação de que Merith não era uma menina indefesa e gentil com quem eu convivera durante esse pouco tempo que estive nesta guilda.

-E você, Gen, vai acordar para a vida agora! PODE IR NOCAUTEANDO SEU IRMÃO E NOS TIRANDO DAQUI, AGORA! - ela parecia ter algum tipo de poder para manter a ordem, mas eu sabia que esse poder seria a intimidação.

Bela jogada.
O certo seria eu ter me estressado, certo? Bem, eu a agradeci. Me fez voltar a mim, me impediu de realizar o maior erro de minha vida. Eu agora estou devendo para ela.
Larguei Gar no chão. O susto foi o suficiente para nocauteá-lo. No fim, ele não passava de um palhaço bobo e bipolar.

-Muito bem! RUM! - ela limpou as mãos.

-Certo, vamos sair daqui. - Ingo pediu.

Aslan fazia um gesto com a mão que consistia em apertar o pescoço. Devia estar dizendo que não conseguia falar.

-Acho que uma flecha te acertou em um ponto ruim. Deixa que eu arrumo. 

Curei a todos. Cada ferida, cada arranhão, deixou de existir.

-Você está ficando bom nisso! - Ingo aplaudiu.

Abri um buraco no "tecido" da ilusão. Podíamos ver nossos corpos jogados no chão, sem vida. Bastava entrarmos neles de novo.

-Sabe, algo me deixou curioso. Se você podia fazer tudo isso antes, porque não fez? - Ingo argumentou. 

-Eu não conseguia antes, eu não sei o que aconteceu. 

Aslan e eu seguramos Gar e o puxamos para fora da ilusão. Aquele era seu corpo físico, então assim que cruzamos a linha entre a ilusão e a realidade, ele caiu duro no chão, sem se mover.

-Rápido, depois conversamos sobre isso, é capaz de ele acordar! - Merith nos apressou.


...

Pisquei meus olhos diversas vezes antes de levantar. Queria ter certeza absoluta de que havia voltado a mim. 
Eu sentia um buraco no estômago, como se não comesse à semanas! Devo ter feito muito esforço para impedir Gar, gastado muita energia, sabe como é.
Todos se moviam novamente. Menos Gar, ele entrou para o clube dos desmaiados.

-CUIDADO! - Yousuke berrou.

Essa era a primeira vez que eu o ouvia falar tão alto. Talvez fosse a última, por que havia uma criatura gigantesca prestes a pisar em mim. 
Eu a reconheci imediatamente. 
Essa criatura era um dragão. Um dragão com escamas prateadas e olhos vermelhos. Um dragão chamado Selion.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

As Pedras de Elementra. Parte 2. Capítulo 16. Narrado por Gen.



Gen


16. Uma pequena pausa para o café.


-Prontinho! - Merith terminou de amarrar a última atadura. - Agora estamos todos bem!

Viramos nosso olhar para Yuuya/Lucius. Ele estava desmaiado no chão, totalmente inconsciente, devido ao excesso de cansaço que teve devido a sua transformação involuntária.

-Ou quase. - ela soltou um risinho nervoso.

-Obrigado pela ajuda. - agradeci.

-Eu estou aqui pra isso.

Bebi um pouco da poção que Merith me dera. Ela me fazia sentir bem, como se espantasse toda a dor e curasse meu corpo lentamente. Tinha gosto de algo que eu não sabia explicar, mas provavelmente deveria vir de algo verde. Tinha gosto de verde.

-O quê tem nessa coisa? - Ingo mantinha sua mão sobre seu braço enfaixado. 

-Ervas, medicações, magia das águas, bençãos, água benta... Bem, isso não vai surtir efeito em Yuuya. - ela contava em seus dedos enquanto falava. - A, desculpe, "Lucius". Eu ainda não me acostumei.

Enquanto conversávamos, Adrian batia varias vezes na porta. Quando recuamos para nos recuperar, uma parede de sombras surgiu. Até agora ela continuava lá, intacta. 
Nada funcionou. Nem a magia branca de Merith, nem as armas de Ingo e muito menos o apoio moral dado por mim.
Ingo começou a cutucar Richard. Ela continuava quebrada no chão, não havia despertado até agora. Seus ossos podiam estar fraturados, provavelmente quebrados, mas ela estava viva, isso eu tinha certeza. Então, para amenizar a dor que nós sabíamos que ela iria sentir, ajudamos Merith a dar uma espécie de calmante para ela, para impedi-lá de acordar. Vai por mim, se ela acordasse naquele estado, ficaríamos surdos de tantos gritos.

-Acha que deveríamos ter seguido Annie e Stephie...? - Ingo se dirigiu a mim, incerto.

-Acho que iríamos atrapalhar invés de ajudar. Eu li suas emoções quando passaram. Não consegui detectar muita coisa, mas elas estavam preocupadas. E com pressa. Muita pressa. 

-Eu não posso ficar aqui sem fazer nada. Vamos sair daqui, achar outro meio de passar! - ele estava bem tenso, quase podia ver suas veias saltarem da testa.

-Temos dois desmaiados, não vamos deixá-los aqui sozinhos! Agora se acalme! - tentei manter a ordem.

Garras cresceram em sua mão direita, acompanhadas de um pelo laranja com listras pretas. Uma garra de tigre?

-O quê é isto? 

-É uma longa história... Digamos que eu seja meio transmorfo. Mas eu não sei controlar isso direito, as vezes aparece, as vezes não... É a primeira vez em um bom tempo. - ele mexia sua nova mão, fechando e abrindo diversas vezes, testando ela.

Eu não consegui aguentar. Eu invadi sua mente e procurei a tal longa história que ele mencionou. Era bem triste. Me fez entender o motivo de ele não entrar em detalhes.
Acontece que sua mãe era uma simples fazendeira que vivia em um pequeno povoado, afastada da civilização
Seu pai era um homem amante da ciência, e gastou até seu último centavo em materiais para sua mais importante experiência. Adrian nunca soube que experiência era essa.
Porém algo aconteceu no meio do desenvolvimento, e ele teve que ser interrompido. Ele perdeu o emprego, a casa, tudo. Ele havia gastado tanto tempo e esforço nesse experimento que perdeu tudo. Amigos, família...
Sem mais motivos ou forças para continuar, ele acabou conhecendo um cigano que o convidou para uma seita estranha. Ele se recusou, mas o cigano não desistiu. Quando ele pôde notar, já fazia parte dela a um bom tempo. Aquilo o garantiu um lar, comida, o suficiente para permanecer vivo.
E então as coisas se complicaram. Ele perdeu o rumo da sua vida e quando notou, estava foragido, sendo perseguido por esse bando de maníacos. 
Ele fugiu para um lugar distante, onde conheceu a mãe do Adrian. Eu tentei me concentrar mais, mas não consegui descobrir o nome dela, e muito menos o nome de seu pai.
O resto da história estava apagada. Esse lugar... Esse quartel general do mal... Ele mexia comigo, deixava meus poderes instáveis. Talvez quando sairmos daqui eu possa descobrir o resto.

-Posso saber porque você está me encarando com essa cara de retardado? 

-Oh, desculpe, desculpe! Eu não percebi! - tentei me desculpar.

Eu não estava mentindo, eu realmente não sabia que estava encarando ele. Quando olho dentro da mente das pessoas, eu não tenho como saber pra onde estou olhando ou o que estou fazendo. Principalmente se for uma pesquisa profunda como essa.

-Estão ouvindo isso? - Ingo se levantou em um salto.

Porém logo depois voltou ao chão. Sua perna estava ferida. Havia um corte tão grande em sua perna, que não havia bandagens suficientes para cobrir tudo.

-Também estou ouvindo... - a voz de Merith soou como um sussurro.

Adrian levantou Lucius com cuidado para não machucá-lo com suas novas garras temporárias. Eu e Ingo seguimos a ideia e levantamos Richard com o máximo de cuidado que conseguimos. 

-De que lado a voz está vindo? - perguntei baixinho.

-Acho que de lá. - Merith apontou para o corredor escuro da direita. - Vamos pelo outro lado.

Todos seguimos pela esquerda, por um corredor não tão escuro quanto o outro. Ao longe, uma luz fraca brilhava, clareando um pouco a caverna. Mas não havia muita diferença da iluminação do lugar anterior.
Mal pude acreditar no que via no fim do corredor. Uma cozinha. Uma vasta cozinha cheia de aperitivos e sobremesas. Entre elas, havia uma torta roxa com formato de nuvem. Eu conheço muito bem aquela torta, Gar a fazia o tempo todo. Antes de ser corrompido...

-Eu... Não... Acredito... Comida! - Merith estava sem palavras.

Seus olhos pareciam brilhar enquanto olhava para aquelas mesas cheias de comida. Se quiséssemos, poderíamos nos servir a vontade.
Eu e Ingo deitamos Richard na primeira mesa vazia que achamos. Adrian fez o mesmo com Lucius.

-Itadakimasu! - Ingo cantarolou enquanto sentava em um dos bancos.

-Oi?

-Se não sabe o que é, vai ficar sem saber. - ele me respondeu com frieza. - Desculpe, falta de comida mexe comigo.

Ele agarrou um garfo e moveu sua mão até o pudim.
"Você vai para o meu prato" ele repetia a mesma frase para toda comida que via.

-Ei, mas nós trouxemos comida, eu não acho que devemos... 
-Qual é, Gen! Temos todo esse tesouro aqui, pra que desperdiçar? - Ingo começou a encher seu prato como uma pessoa que não via comida a um bom tempo.

-Eu não vejo nada de errado. Eles podiam estar no almoço quando os ataques começaram. - Merith limpou o banco e se sentou ao lado de Ingo.

-Você também?! Adrian, o quê você... - ele estava atacando um enorme peru em uma mesa separada. - Estou sozinho nessa.

Todos comiam sem se preocupar. Eu fiquei de lado, junto aos corpos inconscientes de Lucius e Richard.
Eu me sentia tentado a me juntar a eles, mas não parecia correto. De jeito nenhum. Toda essa comida aqui, ela nem foi tocada. A maior parte dela ainda expelia fumaça, parecia que haviam sido feitas a pouco tempo. E isso era algo pra se preocupar.

-Tem certeza que não quer... Se juntar... A gente? - Ingo fazia pausas enquanto falava devido a boca cheia.

Ignorei a pergunta. Eu não conseguia olhar para eles sem ter vontade de experimentar. 
Vasculhei o lugar. Havia mais comida guardada, ingredientes, utensílios, talheres de prata polida...

-Tenho que confessar... Pra alguém que ganha a vida fazendo o mal, eles vivem muito bem. 

Então, algo chamou minha atenção. Uma xícara. Uma xícara com café servido nela, estrategicamente escondida. Quem se daria ao trabalho de pôr aquela xícara ali?
Eu a peguei com cautela e levei até meus amigos.

-Já que estão se arriscando, provem isso para vermos o quê acontece. 

Nenhuma resposta. 
Eles ainda não pararam de comer. A quanto tempo que eles não ouviam falar de comida? Eu vi Ingo e Adrian comer vários sanduíches hoje cedo!

-Pessoal? 

Dei a volta na mesa e puxei Ingo para fora da mesa. Ele resmungou e voltou.

-O quê aconteceu com vocês?! 

Eu não sabia se sentia medo ou raiva. Medo por eles possivelmente terem caído em algum feitiço que não conseguimos detectar, e raiva por estarem me ignorando daquela maneira.
Tentei ler suas mentes. Era igual a tentar ouvir rádio em uma estação fora do ar. Só estática.

-ALÁ! EU DISSE QUE ERA ARMADILHA! - embora eu estivesse brigando com eles, eu sabia que eles não podiam ouvir. 

Procurei ao meu redor algum meio de acordá-los. Se eu deixasse eles ali daquele jeito ele ficariam incapazes de lutar, presas fáceis.
Tentei acordar Lucius. Ele rosnou e se virou para o lado. De inconsciência ele passou para sono profundo, estamos progredindo. Agora, como faz ele passar direto pra fase do acordado?
Então pensei na possibilidade de que se não houvesse comida, não haveria motivos pra eles ficarem ali. 
Subi em cima da mesa e comecei a chutar a comida para longe deles. Feito isso, desci e esperei eles saírem do transe. 
Em um piscar de olhos, a comida voltou.

-Isso já é trapaça! - choraminguei.

O medo superou a raiva. E se eu não conseguisse acordá-los? Chegaria alguém e acabaria com eles. E eu estou no meio deles!

-Vejamos... Analisando a situação, pode ser um transe hipnótico... - eu andava em círculos sem parar, tentando achar uma solução. - Se for, não vou ser eu que vou conseguir desfazer... Então talvez...

Era uma ideia meio louca, mas resolvi tentar. Devia haver um motivo para terem escondido aquele café por aí. Minha teoria? Que alguém suspeitasse que certa pessoa não iria cair no lance da comida, e começaria a bisbilhotar. Deve haver mais comidas ocultas por aí. Elas serviriam de iscas, e eu seria o peixe que não foi fisgado.
Mas eles não poderiam estar em um transe só por comer comida, deve haver algo além. E o único jeito de descobrir o que era, é experimentando algo.
Peguei a xícara de café.

-Se você ousar bagunçar minha mente... 

"Olha lá, Gen enlouqueceu e está falando com uma xícara!" provavelmente este seria o pensamento de qualquer um que aparecesse nesse momento.
Provei do café. Cuspi tudo imediatamente.

-Esse troço é amargo! - localizei o açúcar e coloquei o pote inteiro no café. 

"Vamos tentar de novo..." 
Experimentei novamente. Estava melhor. Estava perfeito. Incrível. 
Aquilo me deu fome.
Sentei a mesa junto de meus amigos e experimentei do pudim que Ingo pegara mais cedo. Perfeito. Incrível. Aquilo sim era uma comida de qualidade. Procurei pelo próximo item que iria experimentar. Uma torta em especial chamou minha atenção, a torta típica de meu irmão. Sacudi minha cabeça e me levantei da mesa com um salto. 

-Xícara, eu te avisei pra não mexer comigo... - eu a peguei e joguei-a no chão.

Ele não se quebrou. Pelo contrário, o chão rachou.

-Mas que... 

As paredes, o teto, tudo rachando. E bem em cima da mesa, um pequeno buraco negro se formava. Ficando maior, cada vez mais. Aquilo não era um transe comum, era uma ilusão mental. Uma ilusão mental de Gar que podia nos matar.
Comecei a sacudir todo mundo, mas eles não saíam da mesa. 

-Droga, droga, droga, droga, DROGA! - comecei a repetir em desespero. - PENSE, GEN!

E então lembrei de algo que Merith me disse mais cedo. Algo sobre seu pavor por ratos e insetos. Valia tentar.
Mas onde eu acharia um rato ou um inseto?
Espere, onde estou com a cabeça? Isso é uma armadilha mental! Eu sou um psíquico! Eu domino esse lugar!
Me concentrei. Tentei fazer o buraco negro se dissipar ou pelo menos enfraquecer. Nada. Eu não conseguia mover nada do lugar. Mas quem sabe trazer coisas novas?
Estalei os dedos com o pensamento fixo em um rato enorme dentro do prato de Merith. 
Ela começou a gritar e caiu para trás.

-SOCORRO! UMA CRIATURA MORIBUNDA NASCIDA DAS SOMBRAS DOS ESGOTOS! - ela correu até a parede, apavorada.

-Funcionou... - eu estava muito impressionado comigo mesmo, eu nunca fizera algo como isso antes tão perfeitamente.

Fiz o rato desaparecer.

-Merith, você têm alguma informação sobre os medos de Ingo e Adrian? 

-O quê? E-eu acho que não. - ela ainda estava tremendo por causa do rato. - N-não, espera! Acho que Ingo tem anatidaefobia

-Agora traduz.

-Medo de... - ela segurou o riso. - Ser observado por patos! - ela começou a gargalhar.

-Sério isso?

"Isso existe? Sério?" 
Bom, valia tentar. Fiz um pato aparecer na frente de Ingo. Sem reação. Então multipliquei o pato. Agora tinham quatro patos o observando. Ele estava com a cara abaixada, e ainda não os tinha notado. 
O jeito foi adaptar para ficarem assustadores. Fiz eles ficarem maiores e terem mãos nas asas. Ingo começou a ser estapeado múltiplas vezes.

-EI! PAREM COM ISSO! - ele finalmente reagiu.

Os patos se afastaram e começaram a observá-lo. Ingo engoliu em seco e moveu seu garfo até um pedaço de bacon. Ele começou a levar até a boca mas ele estava se impedindo.

-PAREM DE OLHAR PRA MIM, BICHOS IMUNDOS! - sua alabarda apareceu automaticamente em suas mãos.

Ele quebrou a mesa ao meio e os patos viraram pó, ao meu comando. Eu não me perdoaria se fizesse aqueles pobres patinhos mutantes imaginários morrerem.

-O quê está acontecendo aqui?! - Ingo estava ofegante.

O buraco negro no teto estava cada vez maior. Agora ele estava sugando as coisas mais próximas do teto.

-Temos que acordar o Adrian! Alguém conhece um medo dele? - corri até Lucius e tentei carregá-lo. Ele era muito pesado para mim.

Ingo se aproximou e me ajudou. Nem ele, nem Merith sabiam de medo algum de Adrian. 

-Merith, tente abrir as portas. - pedi apontando para as três portas existentes no lugar.

Aquela por onde entramos, e mais duas em cantos opostos da sala.
Deitamos Lucius no chão. Quanto mais baixo ele estiver, mais tempo sobreviverá.
Repetimos a ação com Richard.

-Vamos! Saia desse transe! - comecei a puxar Adrian para fora da mesa.

Ele sempre voltava para ela, resmungando algo para si mesmo.

-Alguém tem alguma ideia? Qualquer uma! - implorei.

-Podíamos deixar ele aqui. - Ingo sugeriu.

-Esta não é uma opção. - revirei os olhos.

-Não podemos deixar ele aqui. Literalmente. Não há saídas! - Merith notifico, sombria. - E agora? Alguma ideia? Gen?

-Por que pergunta para mim? 

-Ora essa, você é o inteligente entre nós três. O Ingo é aquele burro que age sem pensar e eu sou a dama indefesa que dá apoio moral e faço o que der para fazer ao meu alcance. O quê sobre sabe você? - acho que era a primeira vez que eu ouvia ela falar uma frase tão grande.

"Essa é boa. Sobrou pra mim agora."
Parei para pensar.

-Bom... Se isso é o que penso que é, deve ter alguma falha. Tipo um bug de computador, algo que pode desestabilizar tudo. Isso nos tiraria daqui, mas eu não faço ideia do que pode ser. - expus a única ideia que eu tinha tido.

-Se encontrarmos, o quê precisamos fazer? - Ingo já começara a procurar algo estranho e diferente pela sala. 

-Acho que tocar, quebrar, esmagar, algo assim, já seja o suficiente. 

O buraco negro acima de nossas cabeças ficava cada vez maior. Claro, comparado aos buracos negros reais aquilo não chegava nem a ter o tamanho de uma formiga, porém já era o suficiente para acabar com a nossa raça.
Corri por cada centímetro da sala, abrindo tudo que tivemos maçanetas ou algo para puxar. Merith e Ingo vinham atrás de mim, examinando tudo.

-Acharam algo? - procurei dentro de um enorme saco cheio de sal.

-Não... - Ingo procurava dentro de um saco de açúcar.

-Gente, as chances de ele estar em um pacote de comida LACRADO são muito pequenas, não acham?! - Merith brigou.

-Temos que verificar tudo. - Ingo estava com a boca cheia de açúcar.

O quê aprendemos até agora?
Buracos negros crescem em tetos; Ingo tem um buraco negro no estômago e tem anatidaefobia; esses dois devem ser meio idiotas, porque perto deles eu sou inteligente.
Quanta lição de vida.

-Gen... - Merith e Ingo chamaram por mim com uma voz flácida.

Eu estava procurando dentro de uma caixa de madeira enorme e acabei ficando preso mas por sorte consegui me libertar. 

-O quê foi?

Eles não precisaram responder. Nas paredes ao redor, haviam mais buracos negros crescendo, se tornando maiores. O que ficava no teto começou a sugar mais forte, ele estava puxando o cabelo de Merith para cima agora.
Fui obrigado a me afastar. Não prestei atenção para onde estava indo e acabei batendo de costas com Ingo.

-Mais algum plano? - Ingo resmungou.

Eu realmente estava tentando, mas eu nunca estivera numa situação daquelas antes!
Procurar nos armários perto da parede não eram mais uma opção, e se continuasse nesse ritmo seríamos sugados por algum deles, e sabe se lá o quê aconteceria conosco! Podíamos ser atirados no espaço para morrer sufocados, ou então podemos ficar presos em alguma dimensão esquisita cheia de aliens canibais, ou pior... podíamos ficar presos em alguma prisão espacial pelo resto da eternidade, comendo comidas esquisitas e com gosto de tofu!
E ainda tem o fato de tudo ser uma ilusão. Podemos morrer? Sim. Mas conhecendo o meu irmão, e o que ele se tornou... Ele vai nos torturar muito, até acabarmos
desistindo da vida. Vamos sentir toda a dor que ele quiser que sintamos. Mas ele é muito extrovertido para simplesmente ir direto ao ponto. Ele está esperando sermos pegos por sua armadilha para o seu "show" começar.
Adrian soltou um grande arroto e se deitou em cima da mesa, com a barriga cheia e estufada.

-Vai dormir agora? NÃO É HORA PARA ISSO! - Ingo sacudiu Adrian, mas ele estava pouco ligando.

-Gen, esse erro na ilusão seria algo que conhecemos ou já vimos antes? - Merith perguntou com a voz fraca. Ela devia estar com medo.

-Acho que sim... - ela me fez ter uma ideia, uma grande ideia.

Eu já tinha visto algo conhecido aqui antes! Foi o que me tirou do transe da comida, a torta marca registrada de Gar! Ele não havia sido tocado por ninguém, devia estar limpo ainda. Só podia ser isso, não tinha outra solução.

-Rápido, preciso da torta! - comecei a revirar toda a mesa, jogando tudo que não era a sobremesa de meu irmão no chão.

Um fato curioso é que eu não presto muita atenção quando desesperado. Isso não deve afetar na minha busca, não é?

-Sério? Já se passou a hora de comer. - Merith implicou.

-Não é uma torta, é A torta! - tentei enfatizar o máximo que pude, para deixar bem claro que eu não era só mais um guloso como o Ingo.

-Qual é a diferença...? - sua voz soou mais inocente do que deveria.

-Pessoal! - Ingo chamou nossa atenção com um grito.

Os buracos negros, os vórtex se preferir, estavam muito mais perto e maiores. O que se localizava no teto estava puxando tudo para cima. Os talheres, os guardanapos, os utensílios, a comida... Se eu não achasse logo a falha da ilusão seria tarde demais. No momento que o objeto for sugado por um dos vórtex, podemos declarar game over. Fim de jogo. Não continua no próximo capítulo. Acho que dá para entender.

-Procurem por uma torta! Roxa ou azul, eu nunca consegui identificar direito, com formato de nuvem! DEPRESSA! 

Merith e Ingo obedeceram sem questionar. Começaram a procurar por todos os cantos. No meio da correria tivemos a ideia de quebrar a mesa com tudo. Se a torta estivesse lá, seria quebrada. Mas não conseguimos tirar Adrian de cima da mesa. Ele havia adormecido e parecia já estar na quinta fase do sono profundo, se é que isso existe.

-Por que tem formato de nuvem? - Ingo perguntou enquanto pisava em cima das comidas e sobremesas.

-Antes de ser corrompido ele já era fascinado por devorar sonhos. Ele fingia que a torta era um sonho e comia todo feliz, com um grande sorriso no rosto. 

-Vocês são estranhos... - Ingo murmurou.

-Nem me fale.

Limpamos a mesa. Quebramos, pisamos, derrubamos tudo que podia ser nosso alvo. Nada. Nem sinal da torta. Estávamos presos naquela ilusão.

-É isso. Acabou. Fim de jogo. - me sentei em cima da mesa e abracei minhas pernas, totalmente arrasado. 

-O quê? Você não pode estar desistindo! - Merith respondeu indignada aos meus murmúrios pessimistas. - Você veio até aqui para ter seu irmão de volta, não é? Se desistir agora, ele ficará corrompido para sempre! É isso que você quer?

"É claro que não!" tive muita vontade de responder, mas eu não consegui. 
Primeiro pensei que eu estava com medo de admitir estar agindo como um fracassado, um perdedor, mas depois eu descobri que nenhum de nós conseguia falar.
Tentei abrir a minha boca. Permanecia fechada. Era como se eu tivesse uma espécie de cola nos lábios. Tentei forçar minha boca a abrir usando as mãos porém não obtive resultado. 
Não demorou muito para Ingo e Merith notarem isso e começarem a se desesperar.
Mas com tantas coisas que devíamos nos preocupar, demos atenção para a errada. Os buracos negros agora estavam muito próximos e nos sugavam com uma força imensa. 
"Rápido, se segurem em algo pesado!" ordenei a eles por pensamento. Meus poderes psíquicos finalmente vieram a calhar. 
Empurrei Adrian para o lado com força e o fiz cair da mesa. Ele fez um barulho alto ao cair no chão mas não era para se preocupar com dor. Pedi ajuda para empurrar nossos amigos inconscientes para de baixo da mesa. Era nossa única opção. 
Logo, estávamos eu, Merith, Ingo, Richard e Adrian em baixo de uma mesa com três buracos negros a nos cercar. 
Espera, e quanto a Lucius?
Procurei por ele em todos os cantos da cozinha, ele não estava lá.
"Pessoal, Lucius desapareceu!" 
"Eu percebi..." Merith respondeu por pensamento.
Eu era poderoso o suficiente para conseguir estabelecer uma conversa mental entre três pessoas, por que eu não pensei nisso desde o início? Nós falamos o tempo todo. Contamos para Gar o que íamos fazer, e ele obviamente se aproveitou disso. Ele deu algum jeito de esconder o ponto fraco da ilusão, e de quem é a culpa? Do mente pequena aqui que não bolou um plano decente mais cedo.
"Será que ele foi engolido por um dos buracos negros?" Ingo estava com os olhos arregalados. Ele sabia que se isso realmente tivesse acontecido, nós seríamos os próximos.
Tivemos segundos de silêncio. Um silêncio mortal. Não houve barulho dos vórtex, nem nenhum pensamento entre nós. Adrian não resmungava enquanto dormia, e Richard nem parecia viva. Esse silêncio perdurou por um tempo. Tempo demais. Não foram segundos, foram mais de minutos. Ou quem sabe não. O tempo parecia não passar, como se cada segundo fosse um longo século. 
Até que então isso acabou. Os buracos negros cresceram o máximo que puderam dentro daquela cozinha amaldiçoada por Gar e nos sugou. Cada um de nós foi para um lado. Eu não pude nem ver o que acontecera com Richard e Adrian. 
Me encontrei em uma espécie de cela de prisão. Eu vestia um longo macacão com listras horizontais pretas e brancas. Em minhas mãos havia uma gaita (um instrumento que eu nunca aprendera a tocar). 
Acima de mim descia uma luz pálida ofuscante. Ela iluminava toda a cela, me permitindo descobrir que ela era redonda, cercada pelas grades. 

-Socorro... - minha voz saiu como um sussurro, embora eu estivesse gritando por dentro.

Comecei a sentir que algo ou alguém me observava. Atrás das grades enferrujadas, um milhão de pontos vermelhos me encaravam. Olhos de algo que com certeza não era humano. 
Aquelas coisas pareciam murmurar algo sobre mim em uma língua distorcida e aguda que fazia meus ouvidos sangrarem. 

-Gar... Eu imploro... Por favor, pare...

Alguma coisa agarrou meus braços com força. Algo que parecia uma corda negra que vinha da escuridão profunda além de minha pequena cela de prisão. Não, não eram cordas, eram correntes. Longas correntes negras com um enorme gancho na ponta de cada uma. 
Comecei a sentir dor imediatamente após descobrir que haviam duas ganchos atravessando meu braço. E aquilo não parou. Mais e mais correntes apareceram da escuridão. Me puxando, me perfurando, me rasgando. 

-Não... Eu imploro, pare... - eu implorava com lágrimas escorrendo dos olhos.

As correntes pararam de aparecer e o barulho das criaturas aumentou. Estavam rindo de minha desgraça. Rindo enquanto eu estava ali, quase morrendo.

-PAREM! PAREM POR FAVOR! - eu gritei em desespero.

As criaturas pararam de rir e começaram a rosnar. 
Um barulho de polias se movendo irrompeu meus ouvidos e as correntes reagiram a isso. Começaram a me puxar. Eu fui levantado no ar e puxado para diferentes direções. Eu iria ser RASGADO AO MEIO se aquilo não parasse. 
Tudo que eu consegui fazer foi gritar de dor. Mas no fundo, eu sabia que não adiantaria nada. Eu passaria aquilo pelo resto da eternidade. 
Até o dia em que minha mente não aguentar mais e meu espírito deixar meu corpo.


...

Gen Nightmare Baku, este que vos fala, foi torturado por um longo tempo, um tempo impossível de se determinar. Poderiam ter sido minutos, horas, dias, anos... Mas não importava. Ele estava completamente submisso a ilusão doentia de seu irmão, Gar Nightmare Baku. 
O quê isso significa? Que ele podia passar anos, séculos, milênios sendo torturado sem parar. Mas na realidade não passaria de uma hora, um minuto ou quem sabe um mísero segundo.
"O quê eu fiz para merecer isso...?" eu me perguntei muitas e muitas vezes, mas nunca consegui achar uma resposta.
"Eu só queria poder reunir minha família de novo! Bom, pelo menos o que sobrou dela."

-O QUÊ EU FIZ?!  

E então, os ganchos me soltaram. Caí no chão fazendo um grande barulho pelo impacto, que ecoou por todo o lugar. 
Liberdade? Não, falsa liberdade. Vai me dar a sensação de que estou livre para me prender novamente e fazer doer mais, muito mais. Jogo mental básico.

-Eu não vou cair nessa. - sussurrei ofegante.

Eu não conseguia me mover. Havia tantos buracos em meus braços e pernas, criados pelos ganchos afiados, que eu achava impossível eu ainda estar vivo. Mas eu estava, e isso comprovava de uma vez por todas que se tratava de uma ilusão sádica da mente agora doentia de Gar.
E então as correntes retornaram. Começaram a aparecer aos montes, uma por cada intervalo das grades da gaiola. Elas vinham lentamente, avançando em espiral. Aqueles ganchos que ora já foram limpos e brilhantes, agora estavam enferrujados e quebrados. Tanto os ganchos quanto as correntes agora estavam em um tom marrom avermelhado, completamente enferrujados. 
Eles fecharam um círculos ao meu redor e a única luz do lugar, que vinha de algum lugar acima de mim e fazia meus olhos arderem por sua intensidade, se apagara.
Meus ouvidos começaram a captar um monte de vozes preocupadas. Algumas me pareciam familiares, mas eu não conseguia as identificar. Parecia que elas estavam longe, bem longe. Corri em sua direção. Devia ser impossível eu conseguir me mover, eu havia sido esquartejado! Mas eu conseguia me mover com facilidade, sem a menor dor.
As vozes foram ficando cada vez mais altas. De início, eram murmúrios. Depois, viraram falas, e logo após, gritos.
Um grande clarão me fez perder a visão e o controle sobre meu corpo. Era como ter os ganchos me puxando para longe, me impedindo de prosseguir. Eu rastejava desesperadamente em direção da luz, lutando contra a força que me atraía para longe. 
Totalmente cego, mantinha minhas mãos na direção de onde eu sabia que a luz vinha. Eu podia não acreditar em deuses, mas naquele momento eu estava quase começando a implorar ajuda a algum. E minhas preces foram atendidas, antes mesmo de realizá-las.
Alguma coisa segurou minha mão e me puxou com força em direção da luz, em direção das vozes. A força não teve chance alguma, foi ignorada como se nem existisse.

-GEN! - uma das vozes gritou alegre.

As outras a acompanharam, me saudando com glória. 
Agora eu já conseguia enxergar. Não era ninguém mais, ninguém menos, que meus companheiros de grupo: Merith, Ingo e Lucius. Pelo visto, Lucius havia restaurado sua força e despertado com força total.

-Você me deu um grande susto, sabia? - Merith me deu um tapa na cara.

Eu não sabia se ria ou se chorava. Era tão bom poder vê-los novamente. Eu sei que humanamente não se passou mais que alguns minutos, tenho certeza disso, mas espiritualmente eu sofri por dias, semanas... Eu estava acabado. Completamente abalado. 
Na próxima vez que vir Gar, não tenho certeza de como reagirei. Não sei se irei tentar salvá-lo ou então matá-lo. 
Uma parte de mim morreu lá dentro. E ele iria pagar.
Mas por hora, tentei fingir que eu estava bem, que nada havia acontecido. Suavizei o máximo que pude quando contei para eles pelos horrores que passei.

-E você aguentou firme a isso? Impressionante. - Ingo bateu palmas suavemente.

-É. Mas não foi tão horrível quanto pensei. - menti - Achei que seria pior.

-Você tem sorte. Eu fiquei cercado por patos. MILHARES deles. E pra piorar, eu estava preso em uma espécie de gaiola. Pra todo lado, aqueles animais endiabrados... - Ingo teve um calafrio.

-E como Adrian está? 

-Bem, pra uma ilusão, a comida era bem real. Adrian está fora de combate. - Merith informou enrolando seu cabelo com o dedo.

-E como foi sua experiência? Cercada por ratos, é? - cutuquei seu braço com meu cotovelo de brincadeira.

-Sim, sim... Claro... - ela parecia tristonha. Passava a sensação de que estava mentindo para mim.

-E você, Lucius, como escapou? E como nos libertou?

-Eu simplesmente acordei. Vocês estavam dormindo, então deixei como estavam... E eu estava com fome, então comi a única comida que havia restado, uma torta esquisita com gosto de amora. - ele soltou um grande arroto que veio acompanhado de um pouco de fogo negro. - Desculpe, força do hábito.

"Ele escondeu o ponto fraco da ilusão no mundo real... Como isso é possível?"

-Eu me dei ao luxo de canalizar um pouco do elementra ao redor para me recuperar. - Lucius contou, sério. - E encontrei uma energia muito estranha em relação a habitual. 

-Elementra...? Eles usam essa palavra no título da guilda, o quê é mesmo? - Ingo coçou a cabeça envergonhado.

-Basicamente nossa força vital. A força vital de tudo, aliás. Tem toda uma historinha para explicar o quê é e a sua origem, depois eu entro em detalhes, se quiser. - expliquei da maneira mais breve que encontrei.

-Então Lucius se alimenta de força vital? 

-Sim, algum problema? - Lucius bufou.

Ingo recuou um pouco. Lucius é um demônio, um devorador de almas vivo, é de se esperar que ele se alimente de força vital, não é? Eu me sinto tentado a bisbilhotar sua mente, mas tenho medo do que posso encontrar lá, então acabo sempre desistindo.
Olhei por dentro da mente de Merith. Ela estava mentindo, sem dúvidas. Eu estava quase conseguindo encontrar a memória certa quando a porta se abriu com um estrondo.

-ESSA NÃO! - o susto foi tão grande que cheguei a pular para longe.

Meu cérebro começou a pulsar de dor. Isso geralmente acontece quando sou interrompido no meio de uma leitura psíquica.

-Ufa, não são mais guardas. Oi gente. - uma voz boba nos cumprimentou. Annie.

-Annie? O quê faz aqui? 

Pisquei algumas vezes. Stephie apareceu ao seu lado. Impressionante.

-O quê vocês...

-Fomos atrás dessa emburradinha aqui. - Annie fazia cafuné na cabeça de Kathryn, que parecia muito irritada. - Não fica assim! Sorria!

-Vocês não tinham nada que se meter. Quem pediu a ajuda de vocês?! - Kathryn rosnou em resposta a simpatia de Annie.

-Melody. - ambas as gêmeas ninjas responderam, em sincronia.

-E tem que agradecer a ela. Se não tivéssemos chegado a tempo, você teria perdido a cabeça, literalmente. - Stephie brigou.

Neste instante, Adrian acordou assustado. Ele pulou da mesa e acabou de cara no chão.

-Já falamos sobre isso, você não sabe voar... - Kathryn mantia sua mão sobre sua cara, transmitindo decepção.

-Kathryn? Você estava atrás das pedras, certo? Como foi em sua busca? - Merith tirou um frasco de uma pequena bolsa presa em seu vestido. 

De onde veio aquela bolsa? Eu nunca tinha reparado antes.

-Parece que tive resultados? - Kathryn grunhiu - Essas duas me impediam toda vez que tinha uma chance de alcançá-las.

-Porque era uma armadilha! Você estava parecendo uma bomba kamikaze! - Annie protestou - De nada serviria você se arriscar para consegui-las se morresse! E se fosse falsa? Hein? HEIN?!

Kathryn a fitou com olhos. Dava para sentir uma tensão entre as duas.

-Vamos com calma. Agora que estamos todos bem, vamos nos apressar, sim? Melody e os outros podem estar precisando de ajuda. - Stephie lembrou.

Ambas Kathryn e Annie concordaram com a cabeça, ainda trocando olhares ameaçadores.
Parece loucura, mas elas estavam brigando por se preocupar uma com a outra. Meninas são complicadas mesmo.
Dei uma última olhada para trás. Depois dos momentos infernais que passei nessa cozinha, tinha certeza que nunca mais iria querer voltar. Então por que eu tive essa vontade de observá-la uma última vez? Talvez eu esteja enlouquecendo. 
Me voltei para a entrada a tempo de ver Kathryn e Annie começarem a discutir. Eu não sei exatamente o que houve, mas eu podia sentir uma batalha iminente.
Em suas mentes era possível ver pensamentos agressivos e descontrolados. As duas transbordavam de raiva. O estranho é que a pouco tempo suas mentes estavam limpas e normais. E eu nunca havia visto tanta raiva condensada ao mesmo tempo em uma única pessoa, quem diria duas.
Aquela sala ainda devia estar sendo controlada por Gar, devia as estar afetando.

-Rápido, temos que sair daqui agora! - alertei a todos.

E você acha que as duas briguentas me ouviram? A essa altura, já trocavam gestos e palavras não muito inocentes. 
Stephie colocou uma mão no pescoço de cada uma delas. Imediatamente, as duas caíram no chão desmaiadas.

-Uau! Você tem que me ensinar isso! - Adrian pediu impressionado.

-Ainda não está a seu alcance. Vamos. - ela pegou a mão das duas e as arrastou para fora da cozinha.

Lucius fez o favor de carregar Richard para nós.

-Porque temos que carregar esse peso morto? Eu poderia me livrar dela, se quiserem. 

-Sem chances. Há uma alma inocente vivendo dentro desse corpo incapacitado! - Merith protestou.

-Caso não saiba, almas inocentes não existem só dentro dessas cascas humanas. - seu olhar foi redirecionado para um outro canto da sala, embora não tivesse nada lá.

Eu não havia prestado atenção antes devido a toda a pressa e a correria pela qual passamos, mas Lucius parecia diferente. Fisicamente diferente. Quando entramos nesse lugar, ele era quase do meu tamanho e parecia ter em volta de doze anos, sem esquecer que tinha um jeito mais tímido e reservado. Porém agora ele estava maior, mais alto. Ele parecia ter lá por um metro e setenta de altura agora.
Não venha dizer que é culpa da chamada puberdade porque é impossível ele passar por todo esse processo em menos de um dia! 
É provável que isso tenha ocorrido devido a sua transformação demoníaca, mas eu não tenho muita certeza quanto a isto.
Atravessamos em silêncio o corredor sombrio. Só se ouvia o barulho de Stephie arrastando Annie e Kathryn no chão, mas o barulho não perdurou muito. Kathryn despertara rapidamente.

-Acordou, estressadinha? - Stephie não se virou para falar com ela.

Examinei suas mentes. Eu não consegui ter acesso a mente de Stephie, era como tentar arrombar uma porta de segurança máxima com um enorme cadeado, ou seja, impossível. Já Kathryn estava de volta ao normal. A raiva se dissipara.

-Por que sinto esse gosto amargo na boca? - Kathryn começou a flutuar no ar, não muito longe do chão.

"Gosto amargo? Como? Ela não comeu nada..." eu já estava começando a suspeitar que algo havia acontecido sem meu consentimento. Resolvi deixar de lado, deve existir uma explicação plausível para isso.
Quando me dei conta, voltamos ao ponto de partida. A mesma parede negra tampava a parede. Ela pareceu não ser problema para Kathryn, que a quebrou-a com um simples movimento com sua mão. 
A parede ficou em pedaços. No chão, só sobraram jóias, várias obsidianas. Agora tínhamos acesso a "arena de combate" do lugar. Nos apressamos, temendo que Melody, Selion e os outros estivessem em apuros.
O quê eu vi foi exatamente o oposto do que eu esperava. Próximo do enorme cubo preso por correntes havia um dragão com escamas prateadas deitado com a barriga virada para cima. Obviamente, Selion. 
A parte estranha não era essa. Havia uma pessoa que eu não reconhecia passando a mão em sua barriga enquanto falava com uma voz enjoativa de bebê.

-Quem vai matar seus amigos? É você! É você sim! - ela continuava acariciando sua barriga despreocupadamente.

Eu estava boquiaberto. Como, porque e quando isso aconteceu foram as primeiras perguntas que me fiz. 
Ainda confuso com o que estava acontecendo bem na frente de meus olhos, encontrei Melody, Aslan, Troian, Misake e Yousuke. Misake estava deitado no chão sendo tratado por Aslan, seu braço ainda estava inchado e pulsando.
Eu consegui detectar o ódio mortal transmitido pelo olhar de Melody. Não precisa ser psíquico para saber que ela estava com raiva. 
Troian e Yousuke estavam fazendo uma barreira a sua frente, para não atacar. Por quê? Não vejo motivo para não abrirem fogo e atacar. Algo devia impedi-los.

-Misake! - Kathryn correu até ele e se agachou. - O quê houve com você? Seu braço...!

-Heh... - ele deu uma risada seca - Eu descobri que não gosto de cobras. - e então seu olhar ficou sério - Não se preocupe, estou bem. Ainda consigo lutar. Bom, mais ou menos.

-Merith, cure-o! AGORA! - Kathryn ordenou.

Ela estava insegura. Com medo do que podia acontecer com Misake. No estado dele, devíamos nos preocupar mesmo.

-E-eu já fiz tudo que pude... Cada poção, cada método, cada curativo... Eu não sei o que fazer... 

Kathryn engoliu em seco, preocupada com Misake. 

-Eu vou ficar bem. Dou um jeito nisso em casa. Agora suas preocupações são outras. - Misake apontou para Selion.

-Quem é ela? Eu nunca a vi antes. - mesmo na distância em que estávamos, era possível enxerga-lá exatamente como ela era.

Ela tinha um longo cabelo castanho claro, que não era simétrico em seu fim, e usava o cabelo preso de um lado (isso demonstrava o quanto o cabelo era comprido). Ela estava com os olhos fechados, então não conseguia identificá-los. Suas roupas? Usava um short curto e tênis cano alto que ia até seu joelho de cor preta e púrpura. Cobria seu busto uma camisa preta com algum símbolo indescritível e por cima uma jaqueta jeans meio chamuscada e rasgada. Sua pele era bronzeada e dava a impressão que ela vivia tendo contato com o sol ou com calor. Jogado no chão ao seu lado, estava um chicote vermelho.

-Ela é uma caçadora de dragões. - Melody explicou. - Uma maldita caçadora que caça dragões divinos. 

-Você fala como se já a conhecesse. - Ingo argumentou.

-É porque já conheço. Já topei com ela uma vez e digamos que não somos chegadas. Mesmo assim, sei que passou gerações atrás de dragões. E parece que ela conseguiu capturar mais um. - após uma parada ela completou - Sim, eu disse gerações, além de extremamente cheia e irritante ainda é imortal.

-Ela capturou Selion? Não, isso não é possível. Ele é só metade dragão. - declarei sem acreditar - Basta ele se des-transformar e tudo fica certo de novo.

-Não é bem por aí... - Troian se intrometeu - Sabe, ele não consegue voltar a forma humana no momento. Não entendo o porquê, mas não consegue.

-E por que não atacam ela e fazem ele retomar o controle?

-Se fizermos isso teremos duas possíveis consequências: ou ela pode machucar Selion gravemente, ou então usá-lo para nos machucar gravemente. Dos dois jeitos, não é uma boa opção. - Troian explicou para mim.

-Caraca... Eu jamais teria pensado nisso! - Ingo revelou.

-É porque você é um cabeça de vento. - brinquei.

"Talvez... Talvez..." foi sua resposta.

-E mais uma coisa. O quê ela ta esperando acontecer? Por que fica lá brincando com ele? - para mim, aquilo não fazia o menor sentido.

-Isso é uma das coisas que está me irritando. Eu não sei! - Melody murmurou.

-Agora eu prometo que é a última coisa. Qual o nome dessa vivente? 

-Scarlet Dra Crimzon. - ela disse o nome como se tivesse nojo dele. - Ou simplesmente Scar da Prisão. 

Kathryn não pode deixar de gargalhar do nome inventado por Melody.
Eu ainda tinha mais algumas perguntas mas preferi ficar quieto. Eu mesmo já admito que estava agindo de uma maneira irritante. "O quê é isso? Como é aquilo?" todos deviam estar se segurando para aturar toda essa falta de conhecimento.
Mas o que me incomodava era o fato de Selion estar totalmente submisso a ela. Como caçadora de dragões, ela deve ter suas táticas, claro. Porém ele parecia estar gostando daquilo, como se não tivesse pensamentos, só uma mente primitiva e animal. 
Espera um momento...
Eu não conseguia detectar nada vindo de sua mente. Nenhum pensamento, nenhuma memória, nada mesmo. Seu cérebro estava vazio. 
Sabe quem vive com o cérebro vazio? Animais. É, parte dos animais existentes mantém sua cabeça vazia. Eles agem por instinto e também suprindo suas atividades básicas para manter a vida (comer, beber, pausa para fezes e seu prazer primitivo). 
Parando para pensar, podemos relacionar isto aos animais de estimação. Eles vivem no bom da vida, tendo todas as suas vontades atendidas, e ainda por cima ganham um cafuné ou uma carícia por dar companhia e alegria a seus donos.
Seguindo esta lógica... Selion havia sido domesticado?